o sábio aventureiro português

- Depois de estudar nas universidades espanholas de Alcalá de Henares e Salamanca, de onde saíam os profissionais mais qualificados e requisitados da época, o médico, naturalista e intelectual português Garcia da Orta (cerca de 1500-1568) clinicou em Castelo de Vide, no Alentejo, sua terra natal, a seguir em Lisboa, e lecionou filosofia na veneranda Universidade de Coimbra. Entretanto, passado algum tempo, decidiu viver no além-mar. Tinha um sério motivo para isso: era judeu e queria escapar da intolerância da Santa Inquisição. Assim, em 1534, oito anos após ser considerado apto à prática da medicina, Garcia da Orta embarcou para a Índia na armada de Martim Afonso de Sousa, o mesmo navegador, político e militar que protegeu as costas brasileiras da cobiça estrangeira e foi donatário da capitania de São Vicente, em São Paulo. Ali permaneceu até a morte, dedicando-se tanto à clínica como aos estudos de farmacologia, botânica e antropologia. Em 1563, lançou em português - e não em latim, como se fazia na época - o livro Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia, um clássico da ciência, dividido em 57 capítulos, nos quais trata das origens, características e propriedades terapêuticas de plantas como aloés, benjoim, cânfora, ópio, ruibarbo e tamarindo; comenta pós-de-cozinha, nome dado pelos portugueses às especiarias, da canela ao cravo, do gengibre à malagueta; e, afortunadamente, fala de comida. No prefácio, apresenta o verso inédito de um amigo desterrado e pobre, o genial poeta Luís Vaz de Camões, futuro autor do épico Os Lusíadas, lançado em 1572. Garcia da Orta foi um dos sábios do século 16.

Enquanto esteve na Índia, passou ao largo da intolerância da Santa Inquisição, estabelecida naquele país em 1565. Mas, com seu desaparecimento e a óbvia impossibilidade de usar o prestígio social para defender a família, teve os parentes duramente maltratados. Sua irmã Catarina, acusada de "judaísmo", foi queimada viva em 1569. A Santa Inquisição também o condenou à fogueira postumamente - e por "judaísmo".

Como médico, atendia quem o procurasse, independentemente da raça, posição social ou religião. Esse fato pode ter contribuído para que, ao iniciar a carreira em Portugal, mesmo sendo judeu, ele conquistasse a simpatia de d. João II, ganhando do rei uma autorização para andar de mula, "o que lhe permitia visitar mais doentes com mais comodidade", segundo Manuel Guimarães, no livro À Mesa Com a História (Colares Editora, Sintra, 2001).

Colóquios dos Simples reúne uma sucessão de diálogos imaginários entre o autor e o amigo Ruano, médico espanhol. Manuel Guimarães, na obra citada, observa que Garcia da Orta se coloca como observador, viajante e português aventureiro. Já Ruano "é a voz do saber livresco, o citador de sábios (...)". Os colóquios transcorrem na residência do autor, em Goa, na costa do Malabar, Província de Bijapur, conquistada pelos portugueses em 1510 e transformada em capital do seu império asiático até 1961, quando foram expulsos pelas tropas da Índia. Naquele endereço, ele recebia dos clientes agradecidos os melhores legumes e frutas, entre as quais laranjas de Cochim, jacas, mangas e jambos de diferentes procedências. Na cozinha da casa, a habilidosa empregada Antônia preparava-lhe galinha de caril e caldo de arroz ou canja. Por sinal, o autor de Colóquios dos Simples fez a primeira referência documental desse prato. Graças a ela, descobriu-se que a canja, prato nacional brasileiro, deriva de uma preparação denominada kengi, típica da costa do Malabar, um caldo de arroz quente e salgado ao qual os portugueses incorporaram a galinha.

A certa altura do livro, Garcia da Orta fala da importância da alimentação dos doentes. A um paciente acamado, que revela ter comido "peixe de muitas maneiras e alguns pepinos", sugere trocar o cardápio. Demonstrando conhecimento de cozinha, recomenda-lhe "uma galinha gorda, tirando-lhe primeiro a gordura", e o aconselha a recheá-la com "umas talhadas de marmelos". Infelizmente, sua obra-prima está esgotada e em Portugal só a elite intelectual a conhece. Em Goa, a plateia ainda é mais reduzida. Alguém recorda da frase antológica do Padre Antônio Vieira - "Se serviste a pátria e ela te foi ingrata, tu fizeste o que devias, ela, o que costuma"?

o estado de são paulo

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