Enquanto esteve na Índia, passou ao largo da intolerância da Santa Inquisição, estabelecida naquele país em 1565. Mas, com seu desaparecimento e a óbvia impossibilidade de usar o prestígio social para defender a família, teve os parentes duramente maltratados. Sua irmã Catarina, acusada de "judaísmo", foi queimada viva em 1569. A Santa Inquisição também o condenou à fogueira postumamente - e por "judaísmo".
Como médico, atendia quem o procurasse, independentemente da raça, posição social ou religião. Esse fato pode ter contribuído para que, ao iniciar a carreira em Portugal, mesmo sendo judeu, ele conquistasse a simpatia de d. João II, ganhando do rei uma autorização para andar de mula, "o que lhe permitia visitar mais doentes com mais comodidade", segundo Manuel Guimarães, no livro À Mesa Com a História (Colares Editora, Sintra, 2001).
Colóquios dos Simples reúne uma sucessão de diálogos imaginários entre o autor e o amigo Ruano, médico espanhol. Manuel Guimarães, na obra citada, observa que Garcia da Orta se coloca como observador, viajante e português aventureiro. Já Ruano "é a voz do saber livresco, o citador de sábios (...)". Os colóquios transcorrem na residência do autor, em Goa, na costa do Malabar, Província de Bijapur, conquistada pelos portugueses em 1510 e transformada em capital do seu império asiático até 1961, quando foram expulsos pelas tropas da Índia. Naquele endereço, ele recebia dos clientes agradecidos os melhores legumes e frutas, entre as quais laranjas de Cochim, jacas, mangas e jambos de diferentes procedências. Na cozinha da casa, a habilidosa empregada Antônia preparava-lhe galinha de caril e caldo de arroz ou canja. Por sinal, o autor de Colóquios dos Simples fez a primeira referência documental desse prato. Graças a ela, descobriu-se que a canja, prato nacional brasileiro, deriva de uma preparação denominada kengi, típica da costa do Malabar, um caldo de arroz quente e salgado ao qual os portugueses incorporaram a galinha.
A certa altura do livro, Garcia da Orta fala da importância da alimentação dos doentes. A um paciente acamado, que revela ter comido "peixe de muitas maneiras e alguns pepinos", sugere trocar o cardápio. Demonstrando conhecimento de cozinha, recomenda-lhe "uma galinha gorda, tirando-lhe primeiro a gordura", e o aconselha a recheá-la com "umas talhadas de marmelos". Infelizmente, sua obra-prima está esgotada e em Portugal só a elite intelectual a conhece. Em Goa, a plateia ainda é mais reduzida. Alguém recorda da frase antológica do Padre Antônio Vieira - "Se serviste a pátria e ela te foi ingrata, tu fizeste o que devias, ela, o que costuma"?
o estado de são paulo

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